sábado, 30 de outubro de 2010

Do que [não] se pode escapar


Adrastea e Medardo olhavam abraçados para o mar. Ele iria velejar pelo mar Egeu e ela ia ao porto apenas se despedir do marido. A hora da viagem chegou e Medardo abraçou a mulher e lhe deu as costas partindo rumo à nau. Enquanto Medardo caminhava Adrastea teve uma terrível premonição: O marido enfrentaria uma forte tormenta que mataria metade de sua tripulação. Ele também morreria. Ela viu o sofrimento do marido morrendo afogado e não pôde deixar de se sufocar e sair rapidamente do devaneio. O esposo, que decidira lançar mais um olhar de despedida à mulher, percebeu sua perturbação e perguntou o que se passava.
A mulher lhe sorriu e disse apenas:
- Bons presságios, meu querido. Bons presságios...

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Teu


Seu Arnaldo era um velho professor aposentado que morava sozinho em um bairro classe média, numa casa de três quartos, dois deles ocupados apenas por seus livros. Era muito conhecido no bairro onde morava. Sempre com um sorriso no rosto, tinha em apenas três anos conquistado bons amigos, desde o padeiro que sempre lhe entregava dois pães a mais e errava (sempre para mais) o peso da manteiga até a mulher da feira que lhe separava sempre as melhores frutas e verduras.
Parecia sempre feliz, cumprimentava a todos, andava sempre com os bolsos carregados de doces que gentilmente servia às crianças da rua que sempre corriam para ele quando o viam.
Nunca era convidado para as festas mais animadas, mas sempre lhe levavam alguns salgadinhos e docinhos embalados com primor.
Ninguém tinha queixa alguma sobre ele. Pelo contrário. Todos falavam muito bem e faziam de tudo para agradá-lo já que ele era conhecido por ser prestativo aos da comunidade.
Pelo menos quatro vezes na semana, jantava fora, sempre sozinho. Comia triste. A feição só mudava quando o garçom se aproximava ou um passante conhecido o cumprimentava. O restante do tempo era tristeza e o garçom, se fosse mais atento, perceberia o desgosto do velho se não se preocupasse tanto com a gorda gorjeta que ele lhe daria ao sair do restaurante por um serviço tão mal-prestado: três sorrisos e uns “mais alguma coisa?”.
Costumava caminhar e contemplar a rua, cumprimentando todos que via. Abria um sorriso para espantar a solidão do peito. Mesmo lhe sorrindo, a solidão não lhe dava trégua e martelava seu peito com a dor imensa que latejava muito pior quando estava em casa, sozinho entre seus livros.
Lia muito, caçava novos autores e se decepcionava com eles. Voltava aos clássicos, se enfadava. Corria para um romance besta, vulgar. Às vezes tinha a leitura interrompida pela vizinha Margot que lhe trazia sempre algum pedaço de bolo recém-preparado.
Parecia feliz, mas não o era.
Imaginem como não foi para o bairro saber que seu Arnaldo, em uma noite de sábado, lançou contra a boca um tiro de revolver e foi encontrado com uma velha fotografia e um pequeno bilhete entre as mãos:
“Bela Quitéria,
espero que tua espera não tenha te frustrado tanto. Eu que nunca tive coragem de te amar em vida, eu que nunca pude te raptar dos braços de teu marido, eu que não pude te livrar da morte fui tarde, mas agora te encontrarei no céu. Deus não há de me negar tua mão. Guarda para mim teu melhor sorriso
Teu amado,
Arnaldo”