terça-feira, 27 de julho de 2010

Entre o palato e a língua


Muxoxo é uma espécie de estalo que se dá com a língua aplicada ao palato, em
sinal de desdém ou contrariedade.

Festa cheia. Ele tentava malabarismos entre as pessoas que se apertavam no salão a fim de não derrubar o copo com sua bebida. Quando conseguiu se desvencilhar das pessoas, viu-a. Ela sorriu. Ele deu seu primeiro muxoxo da noite.
Lembrou dela falando besteiras enquanto via a televisão no domingo. Lembrou de quando ela segurou sua mão, a mais inesperada das vezes, naquela fila de cinema quando saíram pela 2ª vez.
Outra vez levou a língua ao céu da boca e estalou um contra o outro.
Recordou dela completamente nua, esparramada pela cama e ele atônito a observá-la. Quando ela percebeu seu olhar, com vergonha, em vez de cobrir o corpo, cobriu o rosto, mas sem cobrir o largo sorriso que ele pensara ser o maior que já vira.
Rememorou os instantes dela em seu quarto vasculhando seus livros, discos, quadros, pensamentos. Lembrou-se dela devastando sua vida com as perguntas que ele não queria responder e que ela disfarçava fingindo não querer saber, mas não escondia os muxoxos que dava por não ter resposta.
Mais um muxoxo.
Lembrou-se da língua da moça, aquela que tocara a sua tantas vezes. Recordou tantas vezes foi possível os estalos que ela dava quando era contrariada e do quanto ele achava bonito o fato deles denunciarem sua frustração...
A verdade é que nunca a tocara, nem beijara ou tivera nua em sua cama. Ela não vasculhou seus livros, nem lhe fez perguntas ou apertou sua mão de modo inesperado. Ele nunca a tivera em sua vida... E foi isso que o fez dar muxoxos a noite inteira.
Tsc...

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Os papas e as línguas


Eu ando sem papas na língua, cuspindo cobras, com fogo nas narinas.
Eu ando falando coisas sem sentido aos berros.
Eu ando soluçando, gemendo, doendo...
Eu ando nervosa, exaltada e ninguém me segura pelos braços
Ando violenta... Xingo qualquer um que atravesse meu caminho sem pedir licença.
Falo mal de meio mundo, apontando-lhes o dedo
Jogando pedras nos telhados de vidro alheios sem me preocupar com o meu já em pedaços.
Ando praguejando contra os céus.
Acabou-se a preocupação em soar bonito, em falar direito, em omitir meus pensamentos. Vou matar os meus bandidos e ter sete anos de perdão
Eu não me preocupo mais com o que pensam. Eu não quero ser a lady que cruza as pernas ao sentar.
Eu me agarrei ao deboche e com ele beberei aos tragos qualquer gole ruim.
Passo as noites presa às ironias. Faço do cinismo meu melhor amante.
E nas madrugadas trago os charutos cuja fumaça formam as figuras bizarras da minha consciência.
E minha consciência fala, implora, pede aos prantos que eu respire fundo, que eu freie, que eu pare.
Mas o ar é curto... é da distância entre a arma e o suicida, entre as pontas dos meus dedos e as cordas do violão.
Eu não me calo. Eu não me reprimo...
Eu me deixo ir na contramão.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Sobre o término das amizades


Deus sabe o quanto amei meus amigos. Deus sabe o quanto quis bem, mas o fim, meu único amigo, é inevitável. Não que seja meu desejo, mas normalmente o que me acontece é justamente o contrário do que espero.
O que me resta agora senão chorar as dores da minha perda?
Vestir o luto, viver o luto. Ouço a cada instante o som da ausência, o ruído da partida, o barulho do adeus. É como a morte de um bem querer... É velar um corpo em vida, que respira sem precisar de seus pulmões. É como um amor que se vai com os anos. É como o ar que insiste em nos escapar quando mais precisamos.
O que me resta a não ser isso: conformar-me?
Acender velas pela felicidade de meus mortos e esperar que eles façam agora o mesmo por mim.

Amar, meu amigo, não é nada além de perder. Amar é subtrair para quem não soube sequer somar.
Conformo-me.

domingo, 11 de julho de 2010

Sobre Lila e a bicicleta


Lá estava Lila e a bicicleta a enganar qualquer passante, iludindo qualquer um. De óculos escuros e fones de ouvido, parecendo a mulher bem resolvida que nunca foi.
Pobre do rapaz que passa e a olha com um sorriso franco pensando que ela é feliz. Coitado! Como a moça é dissimulada...
Ela canta Beatles e ri de si mesma. Ri de sua farsa, ri de sua dor, ri de quem passa e acredita que ela ri de verdade, que ela ri de alegria.
As pernas não param. Os meninos que jogam bola a olham. O camelô a olha. As crianças riem pra ela... todos iludidos! Coitados...
"Que moça feliz, decidida... Olha como ela se diverte sozinha! Um amor!"

Ah, pobre gente... não sabe que, ao guardar a bicicleta em casa, Lila nem quis saber e deixou na praça o sorriso que fingiu em vão.
Coitado de quem ainda crê naquela moça...